É de Deus
Por Carlos Nascimento
Passarinhos são de Deus, calangos
não. Esse era o critério de exclusão que, em criança, usávamos para escolher os
alvos das brincadeiras de tiro de bodoque ou espingarda de
chumbinho. Mato adentro, canelas raladas, paus e pedras, mas atirar em
passarinhos não! Esses mereciam viver, ainda que a tentação levasse, vez por
outra, a que um deles fosse ter com o Senhor. Tadinho, Deus acolhe. Depois a
gente resolvia no confessionário, se ainda se recordasse do pecado.
Já calangos não era problema. Cada bitelão gordo! Mesmo ágeis, eram alvos fáceis quando parados, secando sobre as pedras. Tinha uns que, quando alvejados, sequer se mexiam. Brotava uma gota de sangue no lugar onde o tiro pegava e pronto, ali mesmo ficava. Era calango demais. Escalavam muros, abundavam nas construções, corriam em desespero, olhavam para tudo e para lugar nenhum. Calango era bom de matar, e não fazia mal. Calango não é de Deus.
Tinha os ratos também. Mais raros,
não se expunham ao sol com tanta despreocupação tal as aves e os répteis. Esses
também podiam morrer. Rato não é de Deus. Bicho asqueroso, sorrateiro, nojento,
do lixo e do esgoto. Além do mais, transmitiam peste bubônica — diziam nossos
pais. Matar ratos era quase como uma boa ação, tipo um serviço social,
altruísmo puro.
Isso mesmo, ratos não são de Deus!
Talvez só os brancos, como aqueles de laboratório, que correm nas esteiras e
comem queijo e tomam drogas em conta-gotas. Esses sim devem ser. Tão
bonitinhos. Figurinhas delicadas, engraçadas até. São de Deus com certeza. Como
não seriam?
Lembro da vez em que visitei o
Butantã. Um homem de jaleco destampou a jaula da jiboia e ali depositou três
ratinhos branquinhos, branquinhos. Fiquei lá, pelo vidro do aquário, a ver a
serpente a sufocá-los até a morte. Depois a degluti-los sem pressa nem dó.
Cobra dos infernos, traidora, comparsa de Eva, como pode? Fiquei a perguntar
por que não alimentam as víboras com ratos pretos, daqueles bem fubentos? Quem se importa com eles?
Talvez a ciência tenha suas razões.
Afinal, ratos brancos são visivelmente mais limpos. Dóceis, certamente de
fácil trato. Mais entregues às vanguardas. Talvez por isso devam servir a um bem
maior. Quem sabe Deus não lhes tenha dado este destino, de se pôr ao sacrifício
na ciência de nos proteger dos males que só ele conhece. Ratos brancos. Ratos
de Deus.
E urubus são? Acho que não. Carcarás são, gaivotas são, periquitos são, cardeais com certeza. Urubus não. Curioso, nunca vi alguém atirando em urubu. Sei lá, talvez
seja por precaução. Urubu, galinha preta, boi da cara... melhor não mexer, pode
ter coisa de macumba, de mandinga no meio. Melhor deixar quieto. Mas galinha de
granja é. Carne macia, limpinha, vigilância sanitária, não passa nem perto de
feitiço. É de Deus sim.
O todo poderoso tem dessas coisas de
escrever certo, né? De mostrar como um caminho tortuoso pode ser o melhor. Como
no dia em que nos colocou à beira de um desvio de estrada bem na hora daquele
engarrafamento dos infernos. Ele sabe o que faz, e para dar prova de sua
bondade — e dissipar possíveis heresias — mandou o aplicativo mudar nossa rota,
aumentou a viagem em quase cem quilômetros, mas nos livrou de horas parados.
E aquelas centenas de
motoristas que ficaram presos na estrada? De certo muitos sem água, com pouca
gasolina, com alguém doente, criança chorando, sem comida, compromissos
atrasados, sono. Que destino Deus teria para eles? Talvez um outro
encaminhamento. Seria uma penitência coletiva? Nesse mundo superpopuloso, bem
que deve ser mais prático. É muita gente para cuidar, muita gente pra ajustar,
pra pôr no caminho certo. Talvez o onisciente tivesse deles se distraído em
favor de algo mais urgente, tipo uns palestinos de lá não sei onde.
E árabes são de Deus? A gente nem
sabe nada deles. Fora explosões, mortes e bombardeios, para que serve essa
gente mesmo? Já vi nos filmes. Só tem miséria. Seriam como calangos? Como
pretos, digo, como ratos pretos? Talvez. Dizem até que Jesus veio daquelas
bandas. Mas acho que não, duvido até. Todo mundo sabe que Jesus é de Deus,
filho legítimo. Esses palestinos, sei não, devem ter feito algo de errado. O
povo de Deus, de Deus mesmo, é do bem.
Aliás, penso que tem até palestino demais no mundo. Vejo uns assim, nas ruas, morando nas calçadas, outros voando entre carros para entregar pizzas, comendo restos, vivendo na Casa Amarela, nas Malvinas, no Alemão, na Rocinha, no Beiru, no Coroadinho, na Barra Alegre, no Jardim Ângela. Lembro que tinha uma empregada lá em casa que sabia até fazer quibe. É de dar medo, Deus me livre! Se proliferam feito baratas. E baratas não são de Deus, até elas sabem. Aquelas cascudas, bem escuronas mesmo? Pode matar sem dó.
Carlinhos, aqui é Maíra. Letícia me enviou seu texto.Eu adorei Parabéns!!!!
ResponderExcluirMuito bom e real!!! Parabéns Carlinhos!!!
ResponderExcluirO mundo com suas oscilações, contradições, real...Texto profundo, reflexivo ....
ResponderExcluirRapaz, que texto espetacular! Você expõe a naturalização dos preconceitos de modo brilhante!
ResponderExcluirCaramba! 🎯
ResponderExcluir👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾
ResponderExcluirSigamos refletindo!
👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿
ResponderExcluirO autor foi feliz ao fazer analogias que evidenciam a hipocrisia presente em atitudes justificadas em nome de uma moral religiosa distorcidam.
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