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A doença de lá. De lá do Brasil.

Por Carlos Nascimento
Em abril de 2009 tive a oportunidade de conhecer Dresden, no interior da Alemanha. Considerada a “Florença do Elba”, famosa por seus museus, escolas e centros de arte, esta cidade ficou marcada como um dos símbolos da crueldade da Segunda Guerra Mundial, após sofrer um pesado bombardeio incendiário realizado pelas forças aliadas no início de 1945, momento em que o conflito na Europa se encaminhava para o final e a derrota do Reich já se mostrava próxima.

Cerca de 25 mil pessoas, em sua maior parte civis, morreram queimados, sufocados ou cozidos sob as labaredas da operação que durou 3 dias e praticamente eliminou a cidade do mapa. Muitos de seus prédios e de seu patrimônio histórico-cultural se encontram até os dias de hoje em processo de reconstrução, e os motivos que levaram ao ataque ainda são discutidos por historiadores e estrategistas militares, uma vez que ali não estavam localizadas indústrias bélicas nem sequer tropas ou equipamentos que significassem alguma ameaça àquela altura da guerra.

Dentre os eventos que se sucederam a este terrível episódio, descrito com maestria por Frederick Taylor no livro Dresden: terça-feira, 13 de fevereiro de 1945 (Editora Record, 2011), chamou-me bastante a atenção para o ocorrido às mulheres sobreviventes do incêndio. Conforme relata o historiador, após o baixar das chamas, Dresden fora tomada pelas tropas libertadoras - os russos - que repetiram ali uma outra barbárie, ao violentar milhares de suas habitantes: prêmio de guerra comumente tomado por soldados e conquistadores ao longo da história.

Não obstante às agruras dos fatos, estas cidadãs - sobreviventes do nazismo, da guerra e da violência sexual - tiveram posteriormente que atuar como mão-de-obra para a reconstrução da cidade e, de forma geral, do país, face a escassez de homens: mortos ou enfermos do combate.

Quando observo o comportamento geral do povo europeu penso que hoje, por detrás de cada atitude pessoal há uma carga de história de seus antepassados. Histórias como as das avós violentadas de Dresden, das famílias separadas por guerras, fronteiras impostas, pestes ou conflitos políticos. Gerações de pessoas que conheceram a dor, a fome e a miséria. Pessoas que, ao longo dos anos, passaram a seus filhos e filhas as experiências de vidas sem escolhas, repletas de privações advindas dessas tragédias.

Pude constatar de perto este comportamento quando estive na Espanha, em meio aos ataques terroristas de março de 2004. Testemunhei ali uma mobilização popular instantânea, aguerrida e espontânea. Sem partidos, diferenças ideológicas ou de raça. Sem medos ou traços de individualismo. Pessoas que foram para a rua brigar pelos direitos de todos. Pelo direito à vida.

Faço uso destas vivências para embasar alguns pensamentos sobre o momento atual do povo brasileiro, frente a batalha que se trava mundialmente contra a COVID-19, pois, talvez por se tratar de um país continental, nunca tenhamos passado por algum tipo de tragédia que tenha afetado à população como um todo. Nossa história, salvo eventos pontuais, não tem marcas de catástrofes, doenças, guerras ou revoltas populares que tenham atingido todo o território nacional a um só tempo. Há sempre uma distância, física ou temporal, entre o brasileiro fatalizado e o outro, participado do fato. Entre o brasileiro herói e o outro, marginal. Entre o brasileiro faminto e o outro, farto.

Pra lá sempre ficam as coisas. Brumadinho fica lá, em Minas. Paraisópolis também é lá, sabe-se lá onde, até mesmo para os paulistanos mais espertos. O sertão do Nordeste, então? Só não deve ser mais longe que o Norte, aquela terra de índio. E pra lá também ficaram as Inconfidências, as Independências, as Farroupilhas, as Balaiadas, os Araguaias e as Diretas: histórias distantes de passados sem valor, nada que nos importe.

E o Brasil? Essa unidade territorial de povos e de raças que vivem em harmonia, fica onde?

Penso que talvez fique na América (do Norte), em algum lugar entre a Sessão da Tarde e a novela das oito. Todos brancos, cristãos, de classe média, com dinheiro, sem preconceitos ou doenças. Todos felizes e protegidos nessa terra abençoada, olhando para os irmãos latinos como inferiores. Como naturalmente se olha para o México a partir das terras hollywoodianas. Podres eles: feiosos com suas caras amassadas, sombreiros, ponches e jeito de mendigo. Pobres deles: poderiam ter nascido aqui, neste solo, no Brasil, na América.


É claro que numa terra maravilhosa como esta, tão rica e tão bela, uma doença não pode fazer tão grande estrago. Isso, de certo, é coisa de gringo ou da TV. É coisa que fica por lá! Lá onde? Sabe-se lá... Por lá! Se aqui chegar, passa logo. Coisa boba. Implica não!

Implica não? Implica sim! Este histórico e cômodo distanciamento dos fatos pode nos dizimar, seja pela saúde, seja pela fome. A atitude de despreocupação ainda acompanha muitos, e a quebra desta percepção de superioridade e descompromisso com o mundo (e com o outro) deve ocorrer para que possamos encarar, de fato, esta situação. É urgente aprendermos a olhar para nossa própria cara e nos reconhecermos como somos: pobres, mestiços, latinos, submissos a culturas e a costumes que não nos são próprios.

Dessa vez quem vai morrer não são os outros, os da TV, os de lá. Morreremos nós: eu, você, nossos parentes, nossos amados e amadas. Gente que pode, e que não pode, se proteger. Gente que a gente sabe que é inocente. Inocente igual à gente!

A guerra que se apresenta não manda bombas incendiárias ou explode trens em estações cheias. Contudo, violenta cada um, em sua casa, no seu íntimo. Mexe, senão com nossos corpos, com nossas almas e, como nunca antes, fere a todos.

O Brasil enfrenta uma situação inédita em que a catástrofe não está mais lá, por detrás das telas ou nos dramas midiáticos dos outros. Não é a seca lá do Nordeste ou o tiroteio lá da favela. Não é o desmatamento lá do Norte nem a morte dos sem-terra lá do sul do Mato. Incomum e em comum, um inimigo invisível nos traz o momento para se pensar este país como Nação. De um povo que necessita se ver como único, e travar uma luta (real), tendo em sua defesa a clareza, a maturidade e o respeito com que os grandes opositores merecem ser tratados.

Comentários

  1. Muito bom. Motivados pelo 2 de Julho hoje eu e um amigo tecemos algumas considerações bem próximo do que você escreveu, pena não ter lido o seu texto antes da conversa .

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