A doença de lá. De lá do Brasil.
Por Carlos Nascimento
Cerca de 25 mil pessoas, em sua
maior parte civis, morreram queimados, sufocados ou cozidos sob as labaredas da
operação que durou 3 dias e praticamente eliminou a cidade do mapa. Muitos de
seus prédios e de seu patrimônio histórico-cultural se encontram até os dias de
hoje em processo de reconstrução, e os motivos que levaram ao ataque ainda são discutidos
por historiadores e estrategistas militares, uma vez que ali não estavam
localizadas indústrias bélicas nem sequer tropas ou equipamentos que
significassem alguma ameaça àquela altura da guerra.
Dentre os eventos que se
sucederam a este terrível episódio, descrito com maestria por Frederick Taylor no
livro Dresden: terça-feira, 13 de fevereiro de 1945 (Editora Record, 2011),
chamou-me bastante a atenção para o ocorrido às mulheres sobreviventes do
incêndio. Conforme relata o historiador, após o baixar das chamas, Dresden fora
tomada pelas tropas libertadoras - os russos - que repetiram ali uma outra barbárie,
ao violentar milhares de suas habitantes: prêmio de guerra comumente tomado por
soldados e conquistadores ao longo da história.
Não obstante às agruras dos
fatos, estas cidadãs - sobreviventes do nazismo, da guerra e da violência
sexual - tiveram posteriormente que atuar como mão-de-obra para a reconstrução
da cidade e, de forma geral, do país, face a escassez de homens: mortos ou
enfermos do combate.
Quando observo o comportamento
geral do povo europeu penso que hoje, por detrás de cada atitude pessoal há uma
carga de história de seus antepassados. Histórias como as das avós violentadas
de Dresden, das famílias separadas por guerras, fronteiras impostas, pestes ou
conflitos políticos. Gerações de pessoas que conheceram a dor, a fome
e a miséria. Pessoas que, ao longo dos anos, passaram a seus filhos e filhas as
experiências de vidas sem escolhas, repletas de privações advindas dessas
tragédias.
Pude constatar de perto este comportamento quando estive na Espanha, em meio aos ataques terroristas de março de 2004. Testemunhei
ali uma mobilização popular instantânea, aguerrida e espontânea. Sem partidos,
diferenças ideológicas ou de raça. Sem medos ou traços de individualismo.
Pessoas que foram para a rua brigar pelos direitos de todos. Pelo direito à
vida.
Faço uso destas vivências para
embasar alguns pensamentos sobre o momento atual do povo brasileiro, frente a batalha
que se trava mundialmente contra a COVID-19, pois, talvez por se tratar de um
país continental, nunca tenhamos passado por algum tipo de tragédia que tenha
afetado à população como um todo. Nossa história, salvo eventos pontuais, não
tem marcas de catástrofes, doenças, guerras ou revoltas populares que tenham
atingido todo o território nacional a um só tempo. Há sempre uma distância,
física ou temporal, entre o brasileiro fatalizado e o outro, participado do
fato. Entre o brasileiro herói e o outro, marginal. Entre o brasileiro faminto
e o outro, farto.
Pra lá sempre ficam as coisas. Brumadinho
fica lá, em Minas. Paraisópolis também é lá, sabe-se lá onde, até mesmo para os
paulistanos mais espertos. O sertão do Nordeste, então? Só não deve ser mais
longe que o Norte, aquela terra de índio. E pra lá também ficaram as
Inconfidências, as Independências, as Farroupilhas, as Balaiadas, os Araguaias
e as Diretas: histórias distantes de passados sem valor, nada que nos importe.
E o Brasil? Essa unidade
territorial de povos e de raças que vivem em harmonia, fica onde?
Penso que talvez fique na América (do Norte), em algum lugar entre a Sessão da Tarde e a novela das oito. Todos brancos, cristãos, de classe média, com dinheiro, sem preconceitos ou doenças. Todos felizes e protegidos nessa terra abençoada, olhando para os irmãos latinos como inferiores. Como naturalmente se olha para o México a partir das terras hollywoodianas. Podres eles: feiosos com suas caras amassadas, sombreiros, ponches e jeito de mendigo. Pobres deles: poderiam ter nascido aqui, neste solo, no Brasil, na América.
É claro que numa terra
maravilhosa como esta, tão rica e tão bela, uma doença não pode fazer tão
grande estrago. Isso, de certo, é coisa de gringo ou da TV. É coisa que fica
por lá! Lá onde? Sabe-se lá... Por lá! Se aqui chegar, passa logo. Coisa boba.
Implica não!
Implica não? Implica sim! Este
histórico e cômodo distanciamento dos fatos pode nos dizimar, seja pela saúde,
seja pela fome. A atitude de despreocupação ainda acompanha muitos, e a quebra
desta percepção de superioridade e descompromisso com o mundo (e com o outro) deve
ocorrer para que possamos encarar, de fato, esta situação. É urgente aprendermos
a olhar para nossa própria cara e nos reconhecermos como somos: pobres,
mestiços, latinos, submissos a culturas e a costumes que não nos são próprios.
Dessa vez quem vai morrer não são
os outros, os da TV, os de lá. Morreremos nós: eu, você, nossos parentes,
nossos amados e amadas. Gente que pode, e que não pode, se proteger. Gente que
a gente sabe que é inocente. Inocente igual à gente!
A guerra que se apresenta não
manda bombas incendiárias ou explode trens em estações cheias. Contudo,
violenta cada um, em sua casa, no seu íntimo. Mexe, senão com nossos corpos,
com nossas almas e, como nunca antes, fere a todos.
O Brasil enfrenta uma situação inédita em que a
catástrofe não está mais lá, por detrás das telas ou nos dramas midiáticos dos
outros. Não é a seca lá do Nordeste ou o tiroteio lá da favela. Não é o
desmatamento lá do Norte nem a morte dos sem-terra lá do sul do Mato. Incomum e
em comum, um inimigo invisível nos traz o momento para se pensar este país como
Nação. De um povo que necessita se ver como único, e travar uma luta (real), tendo em sua defesa a clareza, a maturidade e o respeito com que os grandes opositores merecem ser tratados.
Me sinto tocada!
ResponderExcluirExcelente reflexão!
ResponderExcluirExcelente reflexão!
ResponderExcluirMuito bom. Motivados pelo 2 de Julho hoje eu e um amigo tecemos algumas considerações bem próximo do que você escreveu, pena não ter lido o seu texto antes da conversa .
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