13 de Meio Escravos de Já
Por Carlos Nascimento
Conta uma lenda que Zambelê, escravo revolto fora decapitado ao tentar salvar do tronco um velho negro, companheiro de labuta e de sofrimentos. Seu corpo, enterrado no terreiro da casa grande. Sua cabeça, ao pé de uma oiticica mato adentro. Sua alma, vaga, desde então à procura de conforto, da reiteração da cabeça sumida. Em suas andanças de tudo viu e a tudo vê. A ele se apela o encontro das coisas perdidas.
Apagar
uma alma, uma lenda, uma fé, uma cor, uma gente. Formas tênues de abusos.
Recalques quase invisíveis. Dia a dia, metas alcançadas.
Esvaziamentos
como estes, via de regra, não se registram como atos explícitos de
discriminação. Quando muito, tratados por intolerância religiosa, o que sabemos,
nunca o foi. Ouve-se dizer que mães de santo invadiram templos evangélicos e
depredaram-lhe os equipamentos. Não, não se ouve. Nem se houve. Ouve-se dizer
que gays atacaram executivos na Faria Lima. Tão pouco se ouve, ou se houve.
Nunca
houve, e nunca haverá, justa guerra de narrativas, ou de ideias, enquanto uma
das partes não tiver força e representatividade para o embate. Para tal, cabem
os apagamentos e as descrenças. Estratégias usadas desde sempre em qualquer
tipo de combate. Afinal, batalhas custam caro, e é sempre mais proveitoso bater-se
com um inimigo enfraquecido em suas bases, em suas raízes.
No
cordão da alegria embolam-se pelas ruas os cínicos “somos todos iguais” e os pseudo
arrependidos “nós, que invadimos as terras deles” ou “que os tiramos à força de
sua África natal”. Mas “nós” quem? O EUropeu? Este homem branco, superior, que habita
as certezas de todos? Este que tudo sabe?
Quem de
tudo sabe é Zambelê, que por tudo anda. E talvez ele, se perdido já não estiver,
possa dizer: Se liga mané! Tu és mestiço como eu! Se pensas que és d’além-mar, esqueces
que d’além-mar também sou. Se achas que és dono de meu destino, lembra que me
condenaste a seu destino construir, logo, dono dele sou também.
Postos
assim, os novos senhores da Terra seguem a comandar lugares inconcretos, onde sequer
puseram os pés. Donos do um nada que a tudo domina. Concessores do direito
amplo ao trabalho em campos de ninguém, sem normas, sem limites, sem humanidade.
Que Santa Rita Pescadeira encontre sempre novos corpos para cavalgar, novos caminhos para se perpetuar. Afinal, somos diversos, iguais em direitos, em deveres de respeito à dignidade de cada outro. Somos iguais, diversos em direitos, em deveres de respeito às necessidades de cada outra. Ou então só isso: beneficiários de preconceitos, escravos de preconceitos.
[1] VIEIRA
JUNIOR, Itamar. Torto arado. 2019.
Muito bom!
ResponderExcluirExcelente texto!
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