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Reflexos de Uma Imagem



 Por Carlos Nascimento


 

Era negra.
Suas pernas abrigam a labuta, as latas, as panelas. Seu sexo cheira a detergente. Sua vida a suor. No arear do alumínio a força e a raça para vencer o dia. Em casa, duas, três crias aguardam seu retorno. Ela vai voltar. Os braços doem, a gordura não larga. O Sol espelha na prata seu sorriso. As crias esperam, com fome talvez. O trabalho é esse, é o que tem. Na lagoa escura, a areia, a louça, as panelas, as pernas.

 

Era preta.
Pensa nas regras. Não vieram ainda. Será mais um? Vai dar pra criar? Vai dar pra criar. É a vida. São as regras. As pernas abertas. Seu sexo cheira a Qboa. Que boa. Sorri. Uma lembrança inebria sua mente. Está feliz. Com o que? A gordura não solta, a vida não anda. Vem mais um aí! O dinheiro não dá. Nunca dá. Faz força. A parição é só mais uma. A parição das panelas, das louças, do agacho, dos braços que doem, das pernas que doem.

 

Era escura.
Como as águas da lagoa, era escura. Todo dia as panelas voltam. Tão limpas nunca! Tem que arear. Tem que deixar espelho de Oxum. Oxum protege. O Sol castiga, mas as águas refrescam. É Oxum. As pernas doem. Sorri. Hoje teve amor. A vida é difícil, mas amor ainda tem. A saia tá molhada, o sexo tá molhado. Cheira a coco. A vida segue como as águas. Sorri. A vida é assim mesmo. É água, é barro, é sabão, é limpa, é suja.

 

Era mulher.
Tem a luta. Tem as crias, tem as mães, tem os homens, tem as regras. Tem que ser menos. Tem que ser mais. Tem que ser mãe, que ser doce, que ser forte, que ganhar menos, que apanhar mais, que lavar pra fora, que lavar pra dentro. Tem que gozar. Tem que ser mais. Seu sexo cheira a sexo. Seu sexo. Sua vida não cheira, nem fede. É a vida. É a vida só.

 

Era menina.
E quem mandou aquelas panelas tão cedo lhe ocuparem as pernas? O seu sexo. Seu sexo será assim mesmo? Cheira a coco? Cheira a Qboa? Será assim pra todas? As crias brincam n’água. Oxum protege. Ainda vem mais uma. Quem mandou nascer mulher? Oxum, quem sabe? A meninice vai cedo. São as regras. As águas que escorrem das pernas lavam a louça, dão a vida. O dom da vida. Ela sorri. Sorri de quê?

 

Era santa?
Santa não! Era mulher só. Mulher negra, preta, escura, mulata. Mulher negra só! Nenhum manto, pagão à sua origem, lhe protege do Sol. Nenhuma pureza possível lhe eternizará. Seu sexo, molhado, vem d’Angola, do Congo, do Benin, da Guiné. Sangrado de violência, do corpo, da arte, da alma, da crença. Nada além daquele sorriso faz algum sentido. Talvez uma esperança. Uma força. Algo de leveza. Algo de mulher, de mulher preta. Mulher. Preta. 

 

Comentários

  1. Muito real!! Parabéns Carlos!!

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  2. Refleti sobre os reflexos da interseccionalidade e a sexualização da mulher negra. O teu texto é lindo, parabéns!

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  3. Parabéns Carlinhos. Você consegue ver a alma da mulher que sofre a rotina numa sociedade onde elas quase nunca tem vez...É gutural e poético. Sensível e implacável.

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