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Dr. Wanderley

 Por Carlos Nascimento

Àquela época estagiava em um banco inglês. Gravata era uma condição, bom salário e vale-refeição uma recompensa. Colegas de faculdade zombavam de minha sorte, pois só era indicado para seleções de estágio em boas empresas. Já a maioria deles mal conseguia lugar em escritórios pequenos, com má remuneração e em atividades secundárias.

A agência era algo de se admirar, instalada em um prédio antigo, de arquitetura clássica, mesas e balcões em madeira escura, de lei, guichês de caixa com cabines individuais talhadas em detalhes e um pé direito de quase dois andares. Não me surpreenderia se por aquela porta entrassem bandidos de faroeste ou gangsteres de filme anunciando um assalto. Um símbolo do antigo glamour da região do Comércio, que ainda resistia em meio à já avançada decadência da Cidade Baixa.

Trabalhava no câmbio, redigindo ordens de crédito em inglês e atendendo clientes estrangeiros. Além das operações financeiras, o banco servia como uma espécie de ponto de apoio a turistas. Era comum ser chamado para dar informações e matar dúvidas dos gringos que ali apareciam. Uma experiência interessante.

Do balcão para dentro um gerente que chegava às sete (e que não saia nunca), se alimentava de café e cigarros o dia inteiro enquanto bradava coisas do tipo “[...] um milhão? Deixou de fechar o contrato por isso? Um milhão eu tenho no bolso!”. Surpreendeu-me tê-lo visto vivo há alguns anos, caminhando pela orla. Que bom!

No meu departamento, por ordem hierárquica, sentavam o gerente de câmbio, o assistente, eu (estagiário) e à minha frente, os office-boys. 

Eram três ao todo, que se revezavam em turnos. Dentre eles Wanderley, rapaz simples, boa-praça, morador do subúrbio, preto, como carecia ser à maioria dos trabalhadores de serviços gerais.

Em um dia qualquer toca o telefone em minha mesa e ao atendê-lo uma voz feminina pergunta: “Doutor Wanderley está?”.

De imediato tapei o fone do aparelho com a mão e sussurrei ao colega à minha frente, com o espanto devido:

– “Doutor Wanderley”?

– Sou eu! - sussurrou de volta o moço.

Passei-lhe de imediato o fone e retornei às minhas atividades com um ouvido curioso à espreita.

Após desligar o telefone, corri para me inteirar do assunto e, para resumir, esta era a situação:

Wanderley tinha três namoradas, e para conseguir dar manutenção nos relacionamentos alegava ser gerente da instituição, o que normalmente lhe demandava reuniões noite à dentro. Esquema devidamente acertado com os vigilantes que assumiam o atendimento do PABX após o fechamento da agência.

– Você, gerente de um banco inglês?

– É.

– Entendo.

Prédios velhos cercavam aquelas ruas quase a furtar-lhes a luz do sol. Janelas opacas ou quebradas ladeavam com outras recém-instaladas. Muitas anunciavam serviços de dentista, fotos 3 X 4, empréstimos, advocacia, cursos de informática. Doutras pendiam aparelhos de ar condicionado velhos e barulhentos. Algumas marquises se apoiavam em estruturas de metal donde goteiras e rachaduras causavam medo a quem passava. Entre calçadões de pedras portuguesas, ruínas de demolições, marcas de fogo e de abandono.

As aventuras amorosas de Wanderley despertaram minha curiosidade e, nas horas vagas, me divertia tentando entender em que o rapaz se metera. Em ordem de importância, o Don Juan da periferia tinha uma noiva, uma namorada, que achava ser a única, e uma amante, que sabia de tudo e não se importava. Essa última me parecia ser a mais esperta.

Em minha insaciada curiosidade lhe perguntei um dia, enquanto balançava minha maliciosa mão côncava para baixo:

– E aí Wanderley, me diz, e você transa com as três?

Sorridente ele respondeu que apenas com a namorada e com a amante.

– E com a noiva?

– Não! Com essa não! Essa eu respeito. Essa é pra casar.

Pobre moça.

No Comércio aprendi a tomar cerveja, uma imposição de meu chefe como prenda pelo primeiro salário. Tinha acarajé, passarinha, arrumadinho, coquinho queimado, quebra-queixo, amendoim torrado, amendoim cozido. A evasão para novos centros fez vagar salas comerciais, e nelas se instalaram restaurantes, que serviam almoço a preços populares. Tinha até chinês e espanhol. Boa comida. No Comércio tinha boa comida.

Em determinado dia o contínuo me aparece angustiado. Era seu aniversário e as três amantes cobravam sua presença para as homenagens devidas. A namorada prometia-lhe um bolo, a amante uma moqueca e a noiva uma surpresa. O miserável rapaz não sabia como se virar para atender a tantas devoções. Dessa vez não havia “combinado certo” com o vigilante que o livrasse da obrigação. Como gato macho, teria que maratonar naquela noite para cumprir o suplício de ser tão bem quisto entre suas fêmeas. Ossos do ofício.

No dia seguinte aparece Wanderley. Lóbulos vermelhos, mordidos pelos próprios dentes em um sorriso que não lhe cabia na face. Conseguira tudo, foi comemorado pelas três e com um bônus: a surpresa que a noiva lhe reservara.

– Ela me deu a “xereca”! – festejava fazendo um losango com as mãos.

Estava ali um homem feliz. Um macho pleno. A Testosterona fluía pelos seus poros. Sua proeza era para poucos. Um varão para muitas.

Nas ruas sujas ônibus se aglomeram nos pontos, gente se aglomerava nos ônibus. Nelas conviviam camelôs, pedintes, compradores de ouro, vendedores da Sorte, moradores de papelão, putas, pedintes e pivetes. Lindas praças, árvores e monumentos desamparados pareciam tocar a peleja de lembrar que ali já houve história. A Cidade Baixa insistia em não morrer, a despeito da memória metropolitana que migrava Iguatemi afora.

Preocupado com a saúde e com o futuro do rapaz - agora que ele trepava com tantas - questionei como se protegia. Se usava preservativo, anticoncepcional, enfim, que cuidados tomava?

Sério, “Doutor” Wanderley respondeu que não era bobo. Ele se cuidava sim, e para provar, abriu sua carteira e tirou dela meia cartela de Nordette.

– Viu? Eu dou pílula.

– Mas Wanderley, o quê é que essa cartela de anticoncepcional está fazendo contigo? Ela tem que ficar com sua namorada! Seja lá qual for ela a uma altura dessas.

– Não! Fica comigo! Vai que eu encontro outra aí pelas pirambeiras. Já tô prevenido.

Ratos, gatos e cachorros também habitavam aquele lugar. Pombos aos montes. Pardais demais. Toda uma outra comunidade, com seus próprios rituais e modos, se valia do lixo que por lá se acumulava. Marginais dos marginais. Sua sobrevivência, sua procriação.

Trêmulo com a visão, tentei explicar que não funcionava dessa maneira. Que o anticonceptivo não agia de imediato. Levava um tempo para inibir a ovulação. Não podia ser usado assim.

- Sei disso – respondeu. Eu dou uma (pílula) hora antes e outra uma hora depois. Aí funciona.

Restou-me dar-lhe uma cartilha sobre DST e métodos anticonceptivos. Tentei fazer minha parte.

Não tive mais contato com Wanderley. Não sei o que se deu de sua vida ou de seus amores. Ainda que seu comportamento (e também o meu) refletissem o ideal do macho-galo de terreiro, não consigo julgá-lo para além do relatado nesta crônica. 

Talvez o bom moço - em suas escaladas sexuais - não passasse de mais uma vítima das imposições de uma sociedade machista. Talvez não, talvez apenas as aventuras juvenis de quem estava se experimentando, algo passível de ocorrer a qualquer pessoa, ressalvados os indevidos preconceitos que recaem sobre as mulheres.

Neste ponto me agradam as colocações da psicanalista Regina Navarro Lins, que milita em favor da desmistificação das relações afetivas e das cobranças historicamente associadas a estas, como heterossexualidade, fidelidade ou amor. Se o personagem desta história não cabe como modelo de correção, talvez coubesse pensar que modelos se deve esperar de homens e mulheres, ou que modelos melhor atendem a uma sociedade visivelmente hipócrita em diversos aspectos.

Por fim, contrariando qualquer ideia determinista, tenho esperanças de que tudo tenha corrido bem no caminho de meu ex-colega de trabalho, e se em algum momento meu destino tornar a cruzar com o seu, confio encontrá-lo em seu lugar de direito, quem sabe o de Doutor. Quem sabe?


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