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Em Viagens

Por: Carlos Nascimento

Quando viajo, usualmente me distraio procurando por linhas de trem que margeiam o asfalto, em sua maior parte, abandonadas. Talvez para compensar a enfadonha tarefa de dirigir, me ponho a rastrear esses trechos perdidos de nossa história. Interpreto que, por onde hoje passam afoitos carros e caminhões, dantes locomotivas arrastavam lentos e pesados comboios. Fico a fantasiar para aonde iam esses pedaços de caminho ora largados ao léu. Quantas famílias? Quantas cargas se valiam daquela ousada tecnologia para se mandar caatinga adentro, afora?


Vejo caminhos abertos na mata, pilares de pedras que pontes já sustentaram, pedaços de trilhos. Penso nas razões que motivaram tamanhas empreitadas, decerto tencionadas a ligar a imensidão desse território sem tamanho. Por que delas desistiram? Por que ninguém pensou em preservá-las? Para turismo talvez. Uma menção qualquer de que naquelas trilhas passaram vidas e esperanças. Recordo-me de que, noutrora, na França, pedalei por uma ciclovia, linda, que ferrovia já havia sido. Via narrativas ali, ainda que nem trilhos nem dormentes por lá estivessem mais.

Abandonadas também, não raro encontro pistas de pouso perdidas no sertão. Lembro de Vander Lee Esperando Aviões[1], da música. Aquelas extensões de concreto, asfalto ou terra batida largadas no meio do mato. A que servem? Quem as construiu? Que aviões um dia ali aterraram? Qual seu propósito? 

Olho para o céu. Talvez apareça algum que por lá queira descer, um curioso, um pouso de emergência até, um Saint-Exupéry de passagem. Qualquer coisa, qualquer alado que se preste a tirar daquele ostracismo obra tão ambiciosa, dromo de lançar aos céus um ser tão incapaz, pobre, que não corre bem, que não nada bem, que não voa.

As estradas de ferro invadem o sertão, violentam a mata, arrastam consigo o progresso que um dia por lá pretendia passar. Remeto a meus avós tomando o trem para Sequeiro de Espinho: “A (máquina) número 2 era lenta, gostava quando era a 5”, dizia Seu Epaminondas. “A brasa que escapava da locomotiva fazia furinhos em meu vestido”, explicava Dona Esmeralda. Hoje não estão mais, nem meus avós, nem as malhas, nem mesmo um museu para reter à memória o que naquelas linhas se foi. Restam estações abandonadas, pontes de ferrugem, caminhos desvairados. Ponta de Areia[2] canta (e conta) bem esta tristeza. Aliás, ali perto mesmo, de Ponta de Areia, também jaz outro aeroporto em desamparo, que já recebeu aviões de todo tipo, “americanos” até!

As pistas que do nada surgem, me sugerem outras aventuras. Se não defloram a brenha como as linhas de trem, proporcionam saltos gigantes sobre ela. Possibilidades de contemplar o sertão do alto, de ligar pequenas vilas e cidades a um mundo que sequer às sabe da existência. Saltos pra lembrar que o “(...)Brasil não é só litoral!”[3] e que, se em algum momento fora necessária sua construção, algum valor dali haveria de ser levado para fora.

E há também os vapores: Franciscos, Cachoeiras, Nazarés, Ilhéus. Portos abandonados onde outrora zarpavam e atracavam gentes e riquezas. Navegações que em algum tempo levavam cacau, cana, tijolos, mocinhas e rapazes. Hoje alguns guindastes largados, deques a se dissolver n'água. História perdida, quebrada, memória difícil de se consertar. O esquecimento, hábito tão comum em nossa cultura, é uma arma poderosa para o desmantelo da mesma. Quanta falta. Quantas referências se perdem? Que futuro é possível a um povo que se desfaz de seus alicerces?

Ainda que esta escrita erija uma nostalgia forjada - haja vista que não tenho ciência dos fatores que fizeram largar tão belas ousadias pelo caminho - portos, pistas e trilhos abandonados me fazem pensar num Brasil que não foi. Num emaranhado de fados que um dia haveriam de ser tomados por este país, mas que, atropelados pelas velocidades, pelas políticas ou pela falta de visão, ficaram em ruínas.

(...) Aqui tudo parece
Que era ainda construção
E já é ruína (...)”
Fora da Ordem. Caetano Veloso (1992)

Que não fossem mais úteis em tempos atuais, a ausência destes marcos remete a um passado que não houve. Tantos destroços sem referência, trilhos sem destino, pistas sem norte desonram os esforços de suas empreitas. Das pessoas que, de formas diversas, ajudaram a construir nosso contemporâneo. Símbolo de como fomos condicionados a acreditar no presente sem olhar para o passado. Mecanismo que torna fácil fazer crer que houve glória em tempos nefastos, ou devassidão em tempos de luta.

Das reflexões aqui postas, importa lembrar que deste texto, tudo que foi lido, passado já é. Tempo ido, descrito em ideias que, de uma forma ou doutra, ora se fixam na lembrança de quem se dispôs a até aqui chegar. O futuro, ainda que incerto, é tão eterno quanto o passado que o arquiteta. Vínculo inseparável e delicado. Legado que se deve ter, caminho que se deve pensar.


[1] LEE, Vander. Esperando Aviões. Vander Lee ao vivo, Indie Records, 2003.
[2] NASCIMENTO, Milton; BRANT, Fernando. Ponta de areia. NASCIMENTO, Milton. Minas. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, v. 1, 1975.
[3] NASCIMENTO, Mílton; BRANT, Fernando. Notícias do Brasil (Os pássaros trazem). Oratório. Universal Music, 2002.

Comentários

  1. Acredito que essa longa viagem trouxe essa excelente reflexão!!

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  2. Muito lindo! Vc merece escrever um livro!

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  3. Essa sua viagem me levou a percorrer estradas e caminhos imaginários... Sinto também que são tão reais.

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  4. Fantástico! Me fez resgatar algumas viagens e observações nunca avaliadas sob essa ótica. Seus textos sempre acessam em mim uma parte maravilhosa de lembranças, imaginações e reflexões.
    Belle

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