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Um café no velho novo mundo

 

 Por: Carlos Nascimento

Ainda ontem, e o ontem será para sempre, a preguiça me levou ao boteco mais tradicional de Mucugê para tomar o café da manhã. No balcão do bar, mesmo antes de conseguir concluir minha indagação sobre o preço, me foi apresentado um mal arrumado buffet com banana frita, batata doce, ovos, aipim, bolos, cuscuz, café, requeijão e um tanto mais de coisas.

“Pega aí o que quiser!” dizia o homem orgulhoso em ofertar suas variedades e, em meu segundo pecado do dia, Belzebu trouxe-me à mesa um gordo prato de comida, café e uma suave dor na consciência.

Férias, e com o tempo a meu favor, me pus a observar aquele senhor, quase tão velho quanto a cidade, a se gabar de seu negócio. “Aqui ninguém abre aos domingos, só eu”, “Nem a padaria tá aberta, por isso não tem pão no meu café”, “Meu pai já dizia: é melhor trabalhar no domingo que roubar na segunda”, “Vai lá na fazenda Progresso agora! Tá todo mundo trabalhando. Quem não tá trabalhando tá lubrificando as máquinas pra trabalhar amanhã. Eles tem cinco aviões, sabia?”, reclamava ele ao nada enquanto cantava e assoviada com os passarinhos que invadiam o ambiente à cata de migalhas. Seu balcão, seu palco.

Quando por fim consegui perguntar quanto lhe devia pela refeição, respondeu: “É doze, e você come o que quiser”. Respondi que comeria mais então e ele sorriu. Mentira, não aguentava mais e me contentei com uma xícara extra de café.

De volta ao balcão, um rapaz lhe perguntava quanto custava o café da manhã e ele de imediato objetou: “Eu cobro quinze, e você come o que quiser”. “Mas e se eu comer só um ovo com dois aipins e um café, quanto fica?” perguntou o cliente. “Aí é três”. Como um mercador marroquino a ordem de valores do velho oscilava com seu humor e com o perfil de cada freguês.

Parecia feliz. Dono de seu negócio, senhor daquela esquina, benquisto em seu lugar. Um homem feliz.

Ainda ontem, e o ontem é eterno, conheci um grupo de jovens nômades. Casais de aventureiros, que circulam pelo país em motorhomes, Kombis e vans. Livres e trabalhando online dependem apenas da rede para estar dentro (e fora) do mundo. Gestores de páginas no Instagram, de redes sociais, youtubers, passeiam pela América enquanto trabalham, ganham dinheiro (não sei se muito) e “vivem”. Minha velhice se fascinou por este novo mundo e se perguntou: mas, e onde estão os pecados? A avareza, a gula, a preguiça, a luxúria, a cobiça? Não os via, não os via ali.

Passei um dia passeando com estes meninos e meninas, entre cachoeiras, matos, celulares, Tik Toks, câmeras e drones. Chapadas, Diamantina, dos Guimarães, dos Veadeiros são sua casa. Sua casa? Nem lembram ao certo onde era. 

Tatuagens e códigos encurtam e agilizam sua comunicação: é “Jam”, é “visú”, é “belê”, é a pressa e a dinâmica desse momento. Não a pressa de Paulinho da Viola no Sinal Fechado. Não há nada fechado. A pressa de quem tem um planeta a conquistar. Um misto entre as velocidades, a pequenez e a grandeza desse mundo que parece lhes caber na palma da mão. Gente alegre, humilde, de cabeça aberta. Gente rica.

Problemas? Decerto. São humanos, têm relações, família, amores, decepções, carros, quebras, buracos. Mas tem uma história imensa, imensa mesmo, pela frente. Tem tempo, muito tempo pra resolver a vida.

Inveja? Bem-vindo Leviatã, meu terceiro pecado do dia, que me faz herege às regras, ao caos e aos preconceitos que me cercam. 

Talvez um dia se acomodem. Casa, cachorro, crianças. Talvez não. Talvez não religião, talvez não dinheiro, talvez não patrimônio, talvez não uma vida longa, uma eternidade. Apenas isso: uma felicidade de cada vez, uma vivência.

O velho e os jovens de ontem, e o ontem será sempre um dia melhor, pareciam em paz. Cada um em seu espaço, cada um em seu mundo, em sua realidade, em seu imaginário. E eu, observador desse conflito improvável, feliz também, pelo café, pelo aipim, pelo mato, pela prosa, pelo drone.

Comentários

  1. A cada dia, a cada hora, momentos inesquecíveis de umas férias tão
    bem vividas!

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  2. Estimado amigo, ao retratar este santuário que é a Chapada Diamantina com tanta fidelidade, me transportei imediatamente. Energia de alta qualidade.

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  3. Relato de um lugar mágico com muita beleza e lembranças inesquecíveis!!! Parabéns Carlos!

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  4. Que maravilha!🙏🏾🙏🏾🙏🏾

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  5. É a Chapada, mágico lugar. Mas poderia ser qualquer lugar. A riqueza de tudo está na disposição de olhar em volta, para os fatos que, sendo banais, revelam o que há de grandioso, de universal nessas pequenas falas e caminhadas, nos costumes. Às vezes a tradição, outras, a novidade. Parabéns, Carlos Nascimento!!!

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  6. Show, Carlinhos. Fazia tempo que não lia um texto com tanto prazer.

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  7. Carlinhos, vc sempre nos presenteando com belos texto. Parabéns!

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