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A moral de quem?

Por Carlos Nascimento

Faz algum tempo que provoquei uma discussão entre amigos a partir da constatação de que alguns deles tinham por hábito assistir, com seus filhos pequenos, a lutas de UFC (Ultimate Fighting Championship). Aproveitei a deixa e perguntei se eles também costumavam assistir a filmes pornográficos em companhia dessas mesmas crianças. 

Não sem grande surpresa, fui imediatamente repreendido pela minha pouco ortodoxa pergunta. Ouvi coisas como: “Não! Isso aí é putaria, sacanagem. Não tá certo criança assistir".

Pois então. Como fiz àquela ocasião, repito aqui alguns argumentos que usei para questionar a moralidade de cada atração em meio a sociedade do espetáculo em que vivemos.

A começar pela exposição do corpo, instrumento de trabalho dos partícipes dos shows aqui tratados, templo e objeto de desejo de seu público.

Nos dois casos, atores e lutadores se valem destes - ricos em volumes, músculos, glúteos, peitos e falos - para o deleite de seus espectadores. 

De um lado, lutadores(as) os atracam na tentativa de se matar, mediados por um juiz que procura evitar que se chegue às vias de fato. 

Enquanto noutros palcos, atores também se pegam, se lambem, se penetram, se beijam e, mesmo que de forma simulada, procuram trocar prazer.

Nestes teatros, Eros, Afrodites, Hércules, Poseidons e Vênus - deidades da guerra e do sexo – se fazem representar nas cenas ofertadas a plateias sedentas por luxúria e sangue.

Em ambas as interações, os envolvidos não amam - nem sequer odeiam - seus parceiros de ação. Suas atuações, sejam ternas ou violentas, se enquadram no script proposto para cada esquete. Estão ali para cumprir seus papeis, ganhar seu dinheiro e seguir vivendo. São profissionais que, como tantos outros, laboram em atividades múltiplas, abarcadas com maior ou menor intensidade pelas demandas de um mercado sem limitações ou escrúpulos, cuja moral declina a cada oportunidade de lucro.

Seguindo nas semelhanças, os dois ofícios perigam a saúde e a vida de seus intérpretes, seja pela violência, pelas mirabolâncias sexuais ou pela troca de fluidos diversos. Se lançam estes artistas em peripécias mil, se fazendo dublês para os espectadores que não tem a oportunidade - ou a coragem - de incorrer em tão ousadas aventuras. Profissões de risco, de risco sem dúvida.

Ocorre contudo que, no caso dos ringues, há ampla divulgação na mídia, com análises em programas esportivos e exibição em TV aberta. Gladiadores pós-modernos tratados como heróis. Garotos-propaganda de sabão, cerveja, bancos e celulares. Embaixadores da paz e exemplos de boa conduta para jovens e adultos.

Já na pornografia: canais fechados e estrelas de um universo paralelo. Marginais do mundo “próprio”, excomungados a serviço de desejos de difícil assunção à luz do dia. Uteis? Uteis sim! Como todos os profissionais do sexo, estão dispostos à realização das diversas fantasias íntimas de seu público.

Sim, por diversos motivos, tanto a brutalidade quanto a pornografia nos atraem. Sentimos todos alguma volúpia nas brigas e nos desastres dos filmes hollywoodianos, nos acidentes da Fórmula Um, nas colunas policiais e nos arranca-rabos dos vizinhos. E não por razões distintas, também o sentimos no imagético erótico da nudez na pintura, no cinema ou na fotografia. Violência e o sexo que remetem à mesma pulsão pelo gozo, recalcado por imposições morais e de ordenamento social[1].

E falando em repressões, importa lembrar que cabe ao patriarcado definir qual a “correção” de cada uma das atrações. Sendo assim, campanhas de TV exibem mulheres seminuas, que escorrem sua lascívia em garrafas suadas de cerveja, ao tempo em que homens, também seminus, são sacralizados enquanto sangram a golpes e pontapés.

Com efeito, vivemos em um país onde um ex-ator pornô se elege deputado federal por um “novo” partido conservador, amparado em discursos da preservação da família, dos valores cristãos e dos bons costumes. Discursos sustentados sem a necessidade de qualquer menção de rompimento com seu passado, pouco condizente com a atual postura. Será que uma atriz pornô teria as mesmas chances neste ambiente político?

Penso na Cicciolina[2], que se manteve coerente a “imoralidade” de sua plataforma eleitoral, reivindicando direitos para seus colegas de profissão, assim como outras pautas como a educação sexual nas escolas.

No Brasil, defensores desses “bons costumes” convertem temas como o aborto em um pecado inominável, enquanto promovem a morte com tiros na “cabecinha”, de pretos e pobres (usualmente chamados de bandidos) como política de pacificação social.

Qual a moral? Qual a moral que determina que marginais, crianças e mulheres - vítimas de estupros físicos e sociais - paguem com a vida por escolhas que não tiveram a oportunidade de fazer? Qual a moral que estas pornografias escondem? Qual a moral que estas violências expõem?

Então condenemos o beijo gay da Globo, ou da Bienal; o pelado do Masp; a exposição Queer e as viadagens de Jean Wyllys. Vendamos o sexo da mulher. Compremos o corpo da negra (doméstica). Façamos arminhas com as mãos e vamos todos à igreja.

Salve Dercy Gonçalves, Caetano Veloso, Nilton Bonder. Viva a imoralidade que permeia nossa resistência histórica às normas que nos foram - e permanecem a ser - impostas pelos “homens certos”.

Somos "errados" por natureza, e há de ser este um motivo de nosso orgulho pois, no fundo da alma, nunca nos formamos brancos, nem cristãos, nem fiéis. Não curtimos ternos, tênis e meias. Talvez Ternos de Reis, orgias carnavalescas, alegrias coletivas. Viva a capoeira! Viva o samba!

Viva a cultura! Acochada em tempos obscuros, mas reativa e perseverante na inteligência e na experiência popular. Inteligência que há de superar a pequenez e a hipocrisia que desumaniza o mundo. E a educação, aberta e universal, caminho para a iluminação de ideias e para a quebra de preconceitos que alicerçam esta moral excludente e tacanha. Moral que mata e escraviza em favor da manutenção de poderes ilegítimos, perpetuados em ilegalidades e mascarados em ideologias inúteis a quem efetivamente “trepa e sangra” para sustentar este país.



[1] SILVA JÚNIOR, Jurandyr Nascimento; BESSET, Vera Lopes. Violência e sintoma: o que a psicanálise tem a dizer?. Fractal: Revista de Psicologia, v. 22, n. 2, p. 323-336, 2010.

[2] Atriz pornô nascida na Hungria e naturalizada italiana. Eleita deputada para o parlamento italiano no final dos anos 1980.

Comentários

  1. Adoro teus textos! Tanto o sadismo quanto o masoquismo fazem parte da constituição humana. Como Sade bem nos lembra, alguns um pouco mais sádicos, outros mais masoquistas mas ambos falando do Gozo sexual.

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  2. Fantástico. Coragem de dizer que a hipocrisia rege os nossos costumes.
    Um dedo em riste julgando e condenando, esquecendo que, três está voltado pra si mesmo.

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  3. Hipocrisias, moral de quem? Para quem? De onde vem? Questionamento primário par uma sociedade dúbia!

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