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Speranza, o normal de cada um.

Por Carlos Nascimento

Quando decidi revisar as referências bibliográficas para este texto, descobri que o escritor que escolhera é descrito como um “autor para crianças”, devido à forma como elaborava suas histórias de fácil compreensão. Curioso que o livro que aqui descreverei, lido quando já bastante adulto, tenha tanto influenciado meu pensamento desde então. Penso que, se havia àquela época alguma imaturidade crítica, é possível que muito desta ainda me ocorra uma vez que também mantenho vívidas minhas alusões à Alexandre Dumas, Herman Melville ou Julie Verne: autores para crianças.

Pois bem. Refiro-me a Sexta-feira ou os Limbos do Pacífico[1], livro em que o filósofo francês Michel Tournier toma de empréstimo a história do náufrago Robinson Crusoé[2], em seu exílio forçado numa ilha oceânica, para discorrer sobre questões como a solidão, a civilidade e o enfrentamento do outro, do novo, do diferente.

Sob a interpretação deste autor, uma vez que consciente do isolamento imposto pelo mar, o personagem passa a se ver em conflito não propriamente com a ua solidão, mas sim com a falta de referenciais civilizatórias que orientem seu comportamento e lhe proporcione algum sentido para a vida, além da necessidade básica de sobreviver. Considerando seu entendimento de mundo, o solitário homem resolve então construir um relógio d’água e estabelecer regras e limites sociais para o lugar, ou seja, para si próprio, através da redação de uma constituição e de um código penal.

Uma vez posta a ironia descrita neste episódio, Tournier traz à reflexão a incapacidade do homem contemporâneo de se desvincular de ordenamentos normatizadores, estabelecidos a partir do ideário do “ser correto”. A aceitação da liberdade ou a possibilidade de desconstrução de valores - frente a inexistência de outrem - parecem absurdas ao personagem colocado neste laboratório. Contudo, estas aparentemente ilógicas atitudes de Crusoé trazem para o leitor a pergunta sobre como este se comportaria em semelhante situação. Como se entenderia numa circunstância onde o isolamento imposto trouxesse a necessidade de repensar sua relação com a vida e com o mundo?

Pois, que em nossa realidade, isto veio a ocorrer. A pandemia que assola o mundo pôs cada um frente a sua própria solidão, compulsória e necessária. Até para os que não podem deixar de sair a trabalhar - para sobreviver ou para atender aos serviços essenciais à segurança social – uma nova ordem de convívio baseada no isolacionismo se impõe. A proteção à própria saúde, à da família ou à da coletividade, lança todos a novas ponderações sobre suas relações com o mundo. Também, a expectativa ou a desesperança de retorno ao normal parece causar uma espécie de depressão coletiva, às vezes solidária em identificações, mas decerto individualizante em sua essência.

Retomando o romance, Tournier se vale do Sexta-feira, o segundo personagem desta trama, para lançar seu alter ego a afrontar Crusoé. Um jovem negro, que chega à ilha fugindo de sua tribo e que, por um golpe de sorte, é salvo pelo náufrago inglês que erra o tiro que lhe era dirigido, acertando então seus perseguidores.

Senhor de seu novo velho mundo e “dono” de Speranza - nome que deu ao lugar - Crusoé, ao perceber que o fugitivo não representava ameaça a sua vida, o acata e o batiza e, entendendo então que detém superioridade de raça e de sabedoria sobre o selvagem, procura aculturá-lo e escravizá-lo. Contudo, este processo de domesticação do jovem - feito a duras penas e ao longo de muitos anos – acaba por revelar que as certezas e o universo “equilibrado” do náufrago de nada valem naquele lugar: as percepções de Sexta-feira sobre relações humanas, hierarquia, moral, amizade, leis e mesmo sobre sexo não cedem à civilidade infligida por seu companheiro ilhéu e, com o  tempo, passam a servir de inflexão comportamental a Crusoé, fazendo-o repensar suas buscas e suas realizações naquele ambiente desprovido de tempo e de territorialidade.


Do lado de cá, de dentro da ilha de cada um, muito se especula sobre como será o retorno ao normal, ou ao novo normal como se tem habituado a dizer. Não obstante a estas expectativas, cabe questionar que normal é este ao qual se espera retornar?

Normal talvez seja o mundo do consumo inconsequente. Da compra por impulso de coisas de pouca ou nenhuma utilidade, descartáveis ou adquiridos para a simples sustentação de status. Muitas dessas coisas sabidamente de origem duvidosa ou produzidas à base de trabalho semi-escravo.

Normal é que, para realizar essas compras, milhões de famílias se endividem, ajudando a enriquecer instituições financeiras que agem de forma delituosa com os seus clientes. Famílias, na sua maioria, pobres, sem qualquer tipo de educação financeira e cujo pseudo projeto de vida se resume a sobreviver enquanto consumidores, e não enquanto cidadãos ou seres humanos.

O normal são youtubers mirins, exercendo atividades análogas ao trabalho infantil, desprovidos de regulação e, por vezes, estimulados ou explorados pelos pais. Ou mesmo youtubers adultos, que se fazem passar por adolescentes, convencendo crianças a procurar a felicidade no hiperconsumo, nos excessos e nas gulas.

Normal é a cegueira social que ignora as diferenças e as necessidades dos outros. Que discrimina por raça, religião, gênero, condição financeira ou idade, fazendo reverberar ideias que seriam bem recebidas num regime nazista.

Por falar em nazismo, normal é aceitar a existência de um Estado beligerante que desrespeita e agride a população a quem deveria representar. Uma panaceia que incentiva a violência e a desagregação enquanto protege e preserva criminosos no poder.

Normal também é o capital financeiro e especulativo se sobrepor ao capital produtivo, corroborando para o desemprego e para a ascensão de líderes autoritários, insanos e genocidas. E a hipocrisia de pessoas e instituições que, para justificar seu apoio a estes assassinos, se valem de um pragmatismo que encoberta sua completa indiferença à condição humana.

Normal, quem sabe, também sejam as relações frias por WhasApp ou a farsante felicidade das selfies publicadas no Instagram. A “liberdade” de atacar a outros à distância se valendo da proteção das telas de celular, ou de propagar fake news que podem causar prejuízos, ou mesmo levar à morte, pessoas desconhecidas.

Normal é a precarização das relações de trabalho. A invenção do “você empresário de si mesmo” e da meritocracia entre desiguais, que contribui para a hiperconcentração de riqueza nas mãos de um número cada vez menor de entidades.

Normal é não se atentar para o volume de poluição gerada quando se vai de carro até a esquina, queimando combustível fóssil, para comprar o pão que virá embalado em um saco plástico que se converterá em lixo, minutos depois.

Seria este o tipo de normal que nos faz falta? Afinal, que tipo de normal é este que construímos para nós?

Como referência a um dos fenômenos mais marcantes deste normal, Eugênio Trivinho[3] descreve a sociedade contemporânea como uma dromocracia, onde a pressa define os valores e a capacidade de sobrevivência de cada indivíduo. Conforme o autor, estas velocidades, que rompem tempos e distâncias, fizeram o planeta imergir em um processo de “virtualização e ciberespacialização”, elegendo a cibercultura como a base das relações sociais, políticas e econômicas deste século. Tem-se, portanto, uma sociedade beneficiada, mas também sustentada, em relações etéreas, instantâneas e inconstantes. Interações fortes em ideias, mas vazias em concretude e perenidade. Elementos que também servem de lastro ao pensamento de Sygmunt Bauman[4], que cravou o termo “líquido” para qualificar as relações e comportamentos sociais do momento atual.

No rastro dessa discussão, a onipresença e o uso incessante da internet contribuiu para a falsa percepção de domínio sobre nossas vidas. Hoje, através dos aplicativos de celular, se pode fazer de tudo: pedir pizza; sexo; investimentos; tomar dinheiro; seguir ídolos emergentes; defender ideias descabidas; meditações; pedofilia; forjar e expor uma vida “perfeita” de comercial de margarina. Tudo se pode, afinal o deus internet não julga. É pessoal e intransferível. A Ex Machina que a tudo atende e a nada se impõe, fruto e consequência deste mundo de indivíduos mórbidos em suas alegrias efêmeras.

O sociólogo francês Michel Maffezoli descreve este momento da história (a pós-modernidade) como o do gozo instantâneo[5]. Um gozo não mais trabalhado e esperado para momentos futuros, especiais. Gozado a cada segundo, marcando uma busca pelo preenchimento de vazios que não se esgotam. Um lugar onde não se chega. Reflexo de uma insatisfação e de uma angústia eterna.

Esta combinação de pressas e solidões define em grande parte este normal, que ora concorre com a realidade posta, cada qual com suas próprias doenças. De tanto corrermos para sobreviver e para impor nossas diferenças aos demais, acabamos por chegar onde estamos: ao eloquente nada. Presos em casa ou no isolamento social, possivelmente na realidade que cultivamos durante tanto tempo. A imobilidade impelida pelo medo da morte faz lembrar que esta solidão real não tem nada de glamoroso, já que sozinhos percebemos o quanto dependemos do outro para nos reconhecermos dignos da vida que idealizamos. A divindade de cada um, sensação reforçada pelos poderes virtuais que o ciberespaço nos proporciona, não consegue competir com o laconismo da vida que neste momento se apresenta.

A pandemia, em verdade, sempre esteve aí, transmutada em múltiplas formas de violências invisibilizadas pela tolice e pela arrogância humana. O “vírus democrático” (expressão hipócrita) apenas descortina muitas dessas situações. A volta ao “normal” é claramente uma impossibilidade em um mundo que há muito já se encontrava acamado. Enfermo no egocentrismo e na onipotência pífia que cada um construiu para si.

Talvez importe nesse momento reconhecer o Sexta-feira que aportou na Speranza de nossas vidas. Pensar talvez, que já nos encontrávamos ilhados há muito mais tempo do que possamos perceber. Pôr em xeque o Crusoé que nos prende e nos cria apego a coisas e valores que sequer entendemos a razão de existir. Que as potencialidades super-heroicas propostas pelo consumo e pelo universo deífico que construímos para nosso pobre prazer, não suplantam a realidade à qual nos habituamos a fugir.

Afora a doença, a ilha é uma escolha pessoal e, ao contrário do conto, em nossas existências, não somos náufragos de nossas opções. Oxalá que a vida há de seguir, mas as rotas a serem traçadas depois disso dependerão do que pudermos aprender, e apreender desta terrível experiência. Experiência que nos expõe mais do que nos esconde, e revela o quão insignificante podemos ser enquanto indivíduos e o quanto precisamos retomar de nós mesmos para nos entendermos humanos.



[1] TOURNIER, Michel. Sexta-feira ou os limbos do Pacífico. Editora Best Seller, 2015.
[2] Personagem criado pelo escritor inglês Daniel Defoe em 1719.
[3] TRIVINHO, Eugênio. A condição transpolítica da cibercultura. Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, n. 31, p. 91-101, 2006.
[4] Sociólogo e filósofo polonês, autor de livros como: Modernidade Líquida (2000); Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos (2003) e Vida Líquida (2005).
[5] MAFFESOLI, Michel. Pós-modernidade. Comunicação e sociedade, v. 18, p. 21-25, 2010.

Comentários

  1. Parabéns meu amigo. Lindo texto. Sem dúvida tendemos a ser como Crusoé, porque assim fomos influenciados no berço social e familiar, mas é maravilhoso como a vida pode permitir reflexões como o fez sexta-feira permitiu ao seu "guru". Abraço.

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