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Gente de bem, gente de mal.

Por Carlos Nascimento


Em Panis et Circenses[1], Caetano e Gil descrevem as pessoas na sala de jantar como seres prostrados em suas vidas, de significativas construções de nadas. Vazios de alma, de amor e de sensibilidade, os personagens dessa emblemática obra musical parecem ainda hoje permanecer sentados e satisfeitos com seu universo de mesa posta, talheres de prata e sousplats enredados de florais pasteis. Ilhas distantes e protegidas do Brasil real que não conseguem enxergar.

Ainda outro dia, enquanto observava uma destas mesas, chamou-me a atenção quando um de seus comensais, um jovem de velhas novas ideias, expressou alguma revolta e, em tom retumbante, proclamou: “Mas a gente de bem desse país! (...)”.

A gente de bem há algum tempo me perturba a alma e vem se interpondo a cada pensamento que tenho sobre nossa sociedade, formada, segundo percebem muitos, por gente de bem e gente de mal.

Gente de bem, penso eu, trabalha, paga impostos (?), não fura fila nem dá “roubadinhas” no trânsito. Gente de bem não trai, não usa drogas, vai à igreja e segue à risca o que o clérigo (ou o pastor) prega. Gente de bem não vai a terreiros. Não à luz do dia.

Gente de bem ganha dinheiro na Bolsa. Compra na baixa. Vende na alta. Faz operações conjugadas, lastreadas em títulos públicos, em dólar, day trade, swing trade, com gatilhos ou com travas. Dinheiro limpo. Desvinculado de guerras, fome, desastres, declarações polêmicas, apropriações de terras ou mortes de indígenas. Dinheiro limpo sim! Dinheiro limpo! Do bem!

Gente de mal, não. Gente de mal é abordada pela polícia no meio da rua pela suspeita "certa" de ser gente do mal. Tem que andar com carteira de trabalho no bolso para provar o improvável: que trabalha, que não é vagabundo. Coincide, é claro, ser negra, pobre, homossexual. Anda de pé, de ônibus, de van ou pilota moto barata, pendurada no crediário. Graças ao crediário, também compra celular caro, incompatível com sua cara de mal. E quando roubada, essa gente tem que comprovar que o que lhe fora tomado era de fato de sua propriedade, não surrupiado de alguém de bem(ns).

Gente de mal normalmente é antissocial. Prefere morar longe dos centros e não frequenta shoppings, bares ou restaurantes da moda. Usualmente é vista em bandos: em pagodes, sambas, funks ou tipos outros de facções incultas que envergonhariam qualquer gente de bem.

Gente de mal forra as calçadas da Paulista. Atrapalha a saída da gente de bem das lojas de grife, que é obrigada a contornar aqueles amontoados de semi-humanos taticamente colocados para incomodá-la. Sim! Gente de mal é experta. Ótima estrategista. Marqueteira do horror, escolhe os lugares mais bem frequentados da cidade para tentar criar perturbações à ordem geral e confundir a boa-fé e a consciência de seus opostos.

Em sua face mais filantrópica, a gente de bem sempre tem uma solução para resolver os problemas da gente de mal. Solução inteligente que permita a esta ter uma “coisinha” para comer, um “cantinho” para morar, um “dinheirinho” qualquer para tomar um café. Cachaça não! Mas a gente de mal é orgulhosa, e suscita comentários indignados do tipo: “Olha só! Fica aí na rua só pedindo esmola! Se a gente chama pra lavar um carro, fazer uma faxina, nunca quer (...)”.

A “gente de bem desse país” talvez não perceba, mas ela - em sua sabedoria de sala de jantar – acaba por fazer se reproduzir um número cada vez maior da gente de mal e, como nas brincadeiras infantis de descolar dedinho, promove um perigoso rompimento com esta imagem irrefletida de seus iguais em existência.

O filósofo Byung-Chui Han[2] enquadra em parte esta cisão como consequência da procura do homem neoliberal pelo que lhe sempre é positivo, ignorando a necessidade do reconhecimento do outro (negativo) como fator de aceitação pessoal. Individualização que envenena e violenta uma sociedade que se forja em carências múltiplas e desumanas.

Já o sociólogo Jessé Souza[3] parametriza estas distinções a partir do que trata por racismo cultural. Forma que substituiu o racismo científico tido como verdade até pouco mais da metade do século passado. Em suas percepções, este comportamento se serve de dissimulações para a manutenção de processos hegemônicos de poder e submissão de minorias diversas. Forma de dizer qual o lugar da gente de bem e o não lugar da gente de mal.

A “gente de bem desse país” talvez também não perceba que - em sua maioria - não dispõe dos recursos suficientes para se manter protegida da gente de mal para sempre. Que talvez fosse mais inteligente pensar maneiras de aproximação deste povo - a quem tanto abomina - do que tentar isolá-lo ou eliminá-lo em definitivo. Afinal, a gente de mal pode realmente começar a pensar e agir como tal, e a entender que veio ao mundo com um propósito único: o de manter a sala de jantar sempre limpa e bem servida de vinhos e iguarias inalcançáveis a seu pobre paladar.

Logo, neste país de tantas alegrias e virtudes, a gente de bem e a gente de mal podem não se encontrar exatamente na posição em que aparentam estar. É possível – e isto é apenas uma suposição minha – que a verdadeira gente de mal esteja a passar no pão o caviar do esturjão que a gente de bem labuta para pescar. E que a gente de bem - de bem mesmo - não tenha percebido que já nasceu julgada e condenada. Homo sacer do direito romano. Culpada por existir, mas necessária para a sustentação do lugar de seus juízes, nem sempre divinos: gente de bem ou gente de mal?




[1] VELOSO, Caetano; GIL, Gilberto. Panis Et Circenses. Polydor, 1968.
[2] HAN, Byung-Chul. A expulsão do Outro. Lisboa: Relógio D’água, 2016
[3] SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.

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